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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Isto não é uma crónica I

Eu podia estar a escrever um texto dramático agora - como faço repetidas vezes-, podia estar a inventar um conto, podia estar a escrever poesia sem sentido. Eu podia, e devia, respirar fundo, absorver o mundo ao meu redor para então poder vomitar as letras que se prendem entre as minhas veias. E eu vou. Vomitar palavras e sentimentos, se me pertencem ou não, aí fica a dúvida. Então começo e acabo com isto, uma história de… nada.
António tinha esta mania estranha de nunca duvidar de ninguém, era gentil demais, simpático, sempre cortês e com um sorriso educado; eu, por outro lado, sempre fui ácida para a vida. Deixei veneno disfarçado em cada canto em que permaneci por mais do que trinta segundos mal encarados; muito mal encarados mas tão bem analisados que chegava a doer a vista. Notava tudo, o sorriso falso, o cabelo mal alinhado, o botão mal colocado, a tinta que descascava naquele pontinho minúsculo atrás da televisão, na planta excessivamente verde que era falsa, António reparava que a dona da casa tinha se oferecido para ajudar com os meus priminhos, que parecia realmente feliz com a visita, e entre perspetivas diferentes do mundo a senhora dizia que eramos um casal tão belo. Eu podia ter-lhe dito de tudo mas apenas sorri.
-E o seu marido?
Acabei por perguntar por educação, sem educação. Pouco me importava o marido da velha chata, pouco me importava a vida desta mulher tão alegremente triste. A janela era mais interessante, as escadas de madeira que rangiam eram mais apelativas do que o discurso enfadonho que parecia perpetuar naquela casa. Na minha mão repousava a aliança que tirara antes de entrar, mantive o punho sempre fechado, na minha cara repousava o falso sorriso que eu quase esquecera de por, em todo o meu corpo explodia a ansiedade não evidente de correr dali para fora. Era sempre assim, odiava ter que conhecer as vítimas, isso era ritual dele e não meu; segurei-lhe a mão e apertei, controlando-o, ele era tão inocente, podia cair a qualquer momento. Dois chás e uma boa quantidade de bolachas depois e estávamos porta fora com promessas de voltar em breve.
-Gostei dela. - ele começou.
-Gostas de todas elas. - resmunguei antes de colocar a aliança de volta no dedo. - Mulher chata…
-Assim é bom, quando não gostas custa-te menos.
O sorriso inocente de novo no rosto daquele homem tão grande, meu irmão de criação, tão inocente e tão perdido. Ele sorria para a vida, eu cuspia nela, enquanto a faca que atravessava as vítimas era dele a pá que as cobria era minha.

-Cristina Lemos.